No último dia 31 de outubro do corrente ano, a Reforma Protestante completou 491 anos. Uma das coisas que mais me deixou surpreso nesse dia foi o fato de que poucas igrejas e um número menor ainda de pessoas de confissão protestante se lembraram dessa data tão importante para o Cristianismo.
- De fato, esta realidade tão somente me incentiva a me unir aos poucos que se interessam em mergulhar na bela história de nossas raízes de atitudes tão corajosas, de renúncias tão marcantes, de estudo dedicado das Escrituras, de lutas contra gigantes, de convicções fortes que levaram homens santos à morte e que, somados a tantos outros fatores, formaram uma força do bem que resultou no triunfo da verdade bíblica sobre o engano de uma religiosidade imunda comandada por um clero mergulhado em toda sorte de promiscuidade. E no meio desse divisor de águas, entre uma igreja corrupta e a reforma que objetivava o retorno ao Cristianismo autêntico, encontramos a figura de um homem temente a Deus chamado Martinho Lutero.
- Quero então mergulhar nessa bela história para mostrar que, embora os desinformados e ignorantes pensem que a Reforma Protestante foi meramente um movimento do monge Martinho Lutero em oposição à igreja católica romana, na verdade a Reforma refletiu, no campo da religião, um sentimento mundial de um tempo em que as mentes mais brilhantes passaram a ter uma visão de mundo não mais submissa ao que a igreja e o papa consideravam correto, a saber, no período conhecido como Renascimento ou Renascença.
- Antes, porém, de adentrarmos no cerne da questão, é necessário fazermos uma viajem histórica à chamada igreja medieval. Embora nem mesmo a maioria dos católicos romanos saiba, muito antes de Lutero, vários homens de Deus, católicos, doutores em teologia, reitores de universidades em toda a Europa, enfim, homens de Deus foram injustamente excomungados e mortos de formas terríveis pelo clero da igreja católica pelo simples fato de amarem as Escrituras e proclamarem o Evangelho a todas as criaturas.
- Para se ter uma idéia, a História registrou cerca de cinco grandes movimentos de reforma surgidos na igreja, sobretudo no período medieval, porém o mundo ainda não estava preparado para recebê-los, de modo que foram reprimidos com sangrentas perseguições. Como pretendo tratar da Reforma Protestante de forma mais profunda, por uma questão didática estarei dividindo o nosso estudo em duas partes da seguinte forma: na primeira parte trataremos dos pré-reformadores do período da igreja medieval; e na segunda parte trataremos da Reforma iniciada por Martinho Lutero no século XVI, já no período do Renascimento.
- PRÉ-REFORMADORES – Na igreja medieval, como já mencionado, surgiram em diversos países movimentos que visavam uma reforma na igreja romana. Os albigenses (cátaros), por exemplo, no ano de 1170 no sul da França, rejeitaram a autoridade da tradição, distribuíram o Novo Testamento e opuseram-se às doutrinas romanas do purgatório e adoração de imagens. Em 1208, o papa Inocêncio III mobilizou uma “cruzada” contra eles, assassinando quase toda a população da região, tanto a católica como a parcela que os seguia.
- Outro exemplo que apareceu no mesmo tempo foram os valdenses, em 1170, liderados por Pedro Valdo, um homem de Deus que lia, explicava e distribuía as Escrituras, práticas estas que contrariavam a igreja romana. Valdo fundou uma ordem de evangelistas chamada de “Os pobres de Lyon”, que viajavam evangelizando o centro e o sul da França. Foram cruelmente perseguidos e expulsos da França, porém um pequeno grupo deles conseguiu se esconder durante séculos no norte da Itália e atualmente corresponde a uma tradicional comunidade protestante naquele país católico.
- João Wyclif iniciou um movimento em favor da libertação do domínio do poder romano e da reforma da igreja no século XIV na Inglaterra. Wyclif era doutor em teologia pela universidade de Oxford e era, ainda, o chefe dos conselhos que dirigiam aquela instituição. Defendia que os serviços da igreja deveriam se assemelhar ao modelo do Novo Testamento e não funcionarem da maneira que o papa governava a igreja em seu tempo. Não foi martirizado porque a Inglaterra era uma nação mais desenvolvida intelectualmente e os nobres mais influentes o defenderam. Sua grande contribuição foi a tradução do Novo Testamento para o inglês em 1380.
- João Huss, da Boêmia, o homem que inspirou Martinho Lutero não teve a mesma sorte e foi martirizado em 1445. Lutero dedicou a Huss a concretização da Reforma na Alemanha. João Huss era leitor dos escritos de Wyclif, pregou as mesmas doutrinas e, especialmente, a necessidade de se libertar da autoridade papal. Chegou a ser reitor da Universidade de Praga e exerceu muita influência em toda a Boêmia, porém o papa lhe excomungou e proferiu censura eclesiástica à cidade de Praga só pelo fato de Huss habitar ali. João Huss recebeu um salvo-conduto do imperador Sigismundo para comparecer em um concílio em Constança, porém o acordo foi violado pela igreja sem respeitar sequer o salvo-conduto do imperador. Em 1445 foi queimado vivo em praça pública por pregar o Evangelho na língua alemã e a doutrina bíblica de salvação mediante a fé. Sua condenação além de injusta foi decisiva para a Reforma em sua terra natal e até hoje Huss é respeitado na Alemanha como um herói.
- Jerônimo Savanarola era monge da Ordem dos Dominicanos, em Florença, Itália, chegando a ser prior do Mosteiro de São Marcos. Pregava como os profetas antigos, contra os males sociais, eclesiásticos e políticos de seu tempo. Conta a História, que a grande catedral se enchia de multidões para ouvi-lo. A população obedecia aos seus ensinos. Efetuou evidente reforma religiosa em Florença, porém foi excomungado pelo papa, preso e condenado. Foi enforcado e queimado. Seu martírio ocorreu no ano de 1498, apenas dezenove anos antes que Martinho Lutero pregasse as 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg na Alemanha.
- Um fato importante a se considerar nessa época é a queda de Constantinopla, em 1453, que foi assinalada pelos historiadores como a linha divisória entre os tempos medievais e os tempos modernos. Agora sim, o mundo estava se preparando para assimilar a Reforma que estava por vir. A ignorância medieval daria lugar ao desenvolvimento intelectual e humano dos tempos modernos. Roma não conseguiu queimar a contribuição de cada um desses e de tantos outros mártires que defenderam a fé até a morte.
- Nesse contexto, já no século XVI, um grande acontecimento despertou a atenção de todo o mundo, a saber, a Reforma Protestante que se iniciou na Alemanha e se espalhou por todo o norte da Europa tendo como resultado o estabelecimento de igrejas nacionais que não prestavam obediência, submissão nem fidelidade a Roma.
- Antes de concluirmos esta primeira parte de nosso estudo, é importante anotarmos algumas forças que contribuíram para o progresso da Reforma. Uma dessas forças foi, sem dúvida, o movimento conhecido como “Renascença”. Também chamado de “Renascimento” foi o despertar da Europa para as artes, a literatura e a ciência com a substituição dos métodos e propósitos medievais pelos métodos modernos.
- Durante a Idade Média o interesse dos estudiosos era orientado pela verdade religiosa. O pensamento e a ciência eram submissos ao que a igreja católica achava correto. Se alguém quisesse desenvolver algum remédio, por exemplo, poderia ser considerado um herege sendo queimado em praça pública! Quem achasse que a Terra era redonda, deveria negar todo o árduo estudo que fez sobre o assunto.
- Por outro lado, no período do Renascimento, surgiu um novo interesse pela literatura clássica, pelo grego e pelo latim, pelas artes, de forma inteiramente separada da religião. Apareciam assim, os primeiros vislumbres da ciência moderna. A Renascença abriu a mente humana para pensar livre e sem imposições constituindo, assim, um movimento cético e investigador.
- Embora na Itália, onde teve início, o Renascimento se concentrasse na literatura, no norte dos Alpes, na Alemanha, na Inglaterra e na França, o movimento possuía um forte sentimento religioso, despertando novo interesse pelas Escrituras e levando o povo a investigar os verdadeiros fundamentos da fé, independente dos dogmas de Roma. Lembremo-nos de que a igreja católica romana não permitia que os fiéis lessem a Bíblia! Por que será?
- O surgimento da imprensa em 1455 também foi fundamental e um forte aliado da Reforma, uma vez que através dessa descoberta era possível imprimir várias cópias de livros e Bíblias que podiam circular facilmente aos milhares por toda parte. Para se ter uma idéia, antes de se inventar a imprensa, os livros eram copiados à mão. Uma Bíblia chegava a custar um salário de um ano inteiro de um operário.
- A imprensa possibilitou o uso comum das Escrituras e incentivou a tradução da Bíblia para diversos idiomas da Europa. Nesse período, as pessoas passaram a usar sua inteligência e conhecimento bíblico para questionarem a distância entre o Cristianismo que aprendiam ao lerem a Bíblia e a religiosidade imunda empregada pela igreja romana. Nesse contexto, os novos ensinos dos reformadores eram publicados em livros e folhetos circulando aos milhões na Europa.
- Outro fator importante foi o espírito nacionalista que emergia na Europa. A população de vários países estava cansada das imposições vindas da igreja católica romana sobre seus países. O povo passou a exigir igrejas nacionais e sem nenhuma submissão à autoridade estrangeira.
- Pronto! O palco de uma grande mudança já estava montado. O clero já não estava dispondo de todo o seu poder de ilusão de outrora. Agora já se observava um sentimento moderno de investigação, um olhar crítico divorciado de fanatismo religioso, um sentimento de liberdade, de desenvolvimento humano e, sobretudo, de busca da essência do verdadeiro Cristianismo. Mais uma vez o mundo já não seria mais o mesmo! De fato, Deus não deixaria que as portas do inferno prevalecessem contra a Sua verdadeira Igreja, a saber, aquela formada por cristãos sinceros e autênticos, alcançados por Sua irresistível graça e cuja conduta estava pautada nas Escrituras Sagradas.
- O estopim da Reforma Protestante e a análise de suas principais causas serão cenas a tratarmos na segunda parte deste estudo. Aguardem e confiram.
André Bronzeado
Referências: HURLBUT, Jesse L."História da igreja cristã" - São Paulo: Ed. Vida, 2002.